- Porra, Nana, você chamou a vovó de 'velha normal'.
- Hã?
- Ela vai ficar puta.
Queria propor aqui - e quem sabe até eu mesma me animo a fazer - uma cartilha para escritores que ameaçam sair do privado e se tornam públicos, ainda que muito humildemente.
Sempre cultivei um arzinho assim meio rebelde. "Escrevo o que eu quero e ninguém tem nada a ver com isso!". Mas agora me dou conta de que era muito fácil fazê-lo no anonimato.
Um simples lançamento (pra mim não foi nada simples. Eu adorei! mas simples no sentido de sem grandes holofotes) me abriu as portas para o que pode ser um mundo infernal de conversas tete à tete com pessoas que possam vir a se sentir mal representadas em meus escritos.
Que eu escrevo frequentemente inspirada na minha pessoa e na minha vida, não é segredo pra ninguém. Pelo menos, para ninguém que lê o meu blog ou para quem eu mando meus textos. Mas houve um certo exagero na crítica da minha simpática irmãzinha lá em cima. Porque, justamente, neste caso específico - no conto que foi publicado na Coletânea Humor Vermelho, da qual já tenho muito orgulho! - não fiz isso tão displicentemente. Juro de pés juntos que é mentira! Que a história é inventada. E atenção porque posso estar decepcionando vários leitores que foram lá, compraram o livro e leram minha hitorinha à lá humor negro achando que foi mais uma das maluquices que aconteceram comigo. Não foi. Não assim.
Agora, é claro que peguei alguns fatos aleatórios e meti lá. Coisas corriqueiras. Toques muito sutis, referências. Como o fato da minha avó ter sido mesmo muito mais nova que o meu avô. Coloquei lá 30 anos, nem sabia se era essa a real distância temporal entre eles. Não interessa. Peguei um fato ao acaso qualquer, que me veio à cabeça no momento em que eu escrevia e tasquei lá:
"ele já estava tão velhinho... Porra! 96 anos é vida pra caceta! Na verdade, ele sempre foi velho. Tá, avô é velho. Mas o meu era mais velho do que o velho normal para avô. Era quase trinta anos mais velho que a minha avó, que é uma velha normal".Bendita hora!
O pior é que Tatiana fez sua pertinente observação bem no comecinho da noite. O que me fez permanecer com a pulga atrás da orelha o resto da 'festa'. Pqp!
Aí, chega a minha mãe com seu exemplar para eu autografar. Ótimo, ia me distrair um pouco. É sempre bom ter ali sua mãe com orgulho de você, certo? Mas aí, não aguentei:
- Mãe, a Taty falou que a vovó ia ficar chateada com o que eu escrevi, mas não tô falando dela. Eu...
- É. Comprei pra ela também que não pôde vir e me pediu, mas agora que eu li, também fiquei um pouco na dúvida se devo dar.
(...)
A pulga foi promovida a grilo. Eu realmente estava grilada. Nada, nem ninguém mais que surgisse lá para me cumprimentar tirava meus pensamentos da sentença inconveniente. De todas elas, aliás. Da que eu mesma escrevi ingenuamente, sem nem sonhar com a 'fama'. Da que a minha irmã escolheu para me parabenizar e agora a da minha mãe...
A noite demorou a passar. Fiquei lá um tempão fazendo sala pros queridos que foram lá me ver; depois jantei com amigos e cunhados; e só depois de meia-noite, entramos no carro para voltar para casa.
- Pô, a Tatiana e a mamãe me deixaram meio tensa dizendo que a vovó vai achar que escrevi sobre ela.
- É, gente mais velha pode entender assim mesmo.
Bacana.
Não achei uma alma boa, capaz de perceber que eu precisava ouvir algo totalmente diferente.
Bom, cheguei em casa e liguei pra velha:
- Vó.
- Oi, minha filha, pôxa eu não pude ir... Sabe o que é? Estou com a perna ruim. Está difícil de andar. Eu tenho que ver isso. Antes que eu pare de vez, né? Sua mãe já marcou um monte de exames pra mim... (mais dez minutos falando).
- É, vó. Tem que se cuidar.... Olha só, a Tatiana me deixou meio encucada porque no conto que escrevi falo de avó, de avô que foi cremado, de Cachoeira Paulista, de Muriqui... mas não é sobre vocês, entende? Só me inspirei em alguns fatos reais. Sabe tipo novela? Que nem quando a Glória Perez põe os personagens vivendo uma situação que aconteceu parecida na política... Enfim, é ficção. Fiz uma novela usando algumas referências.
- Sei. Que legal. Vou gostar!
- Pois é. Tem uma hora lá que falo que a minha avó é uma velha normal.
- Ué, mas eu sou uma velha normal mesmo.
- Não. Mas eu não falo nesse sentido. É que falo que o vovô, aliás o avô do conto, era muito velho, mais velho 30 anos que a minha avó que é uma velha normal. Entendeu? Normal de idade.
- Ele era 25 anos mais velho que eu só.
- Tá. Não importa. Aí é que tá. Tá vendo? É disso que estou falando. Não são vocês. É parecido só.
- Ah... Tá bom. Mas encucada com o quê?
- Disso. De você ler e ficar triste, achando que eu fiz pouco caso, que não tive cuidado ao me referir a vocês.
- Mas você não disse que não é a gente?
- Isso! Não, não é.
- Tudo bem.
- Ai, que bom, vovó. Eu tava tão preocupada... Tomara que você goste. É engraçado. Um humor negro, sabe? Tipo... Sei lá, "Vamp". Não tô achando nenhuma novela boa agora pra dar de exemplo.
- Tá bom. Vou ler. Sua mãe vem aqui me entregar o seu livro amanhã. Mas você falou lá no início de Cachoeira Paulista e o quê?
- Muriqui.
- Não, não. Foi Ibicuí. Em Ibicuí que jogamos as cinzas do seu avô.
- Mas, vó, lembra que não são vocês...
- Ah é... Mas, oh, Cachoeira Paulista tá certo.
Adoro a minha avó. Adoro escrever. E isso foi uma homenagem real! a uma velha nada normal.